Carne Cultivada Sob o Microscópio

Carne Cultivada Sob o Microscópio: Preocupações e Controvérsias

Também conhecida como carne cultivada em laboratório ou baseada em células, alimento está emergindo rapidamente como uma solução pioneira para vários desafios impostos pela pecuária convencional.

Monica Piccinini

Londres, GB – 9 de agosto de 2023

5.6 Minutos.

Ao cultivar células animais em ambientes controlados, cientistas e inovadores estão abrindo caminho em busca de uma abordagem mais sustentável e ética para a produção de carne.

A indústria da carne de cultura sugere que essa tecnologia promete reduzir a degradação ambiental, abordar as preocupações com o bem-estar animal e atender à crescente demanda global por proteínas, com a possibilidade de remodelar o futuro dos sistemas alimentares.

Como acontece com qualquer tecnologia emergente, a carne cultivada em laboratório, também conhecida como carne cultivada, vem com seu próprio conjunto de riscos e desafios potenciais, incluindo segurança alimentar, alergenicidade, preocupações nutricionais, impacto ambiental, considerações éticas, rotulagem, questões regulatórias, escalabilidade, custos, falta de estudos independentes, bem como direitos de propriedade intelectual.

Em junho de 2023, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) aprovou tanto a Upside Foods quanto a Good Meat para vender seus frangos criados em laboratório, após liberação da Food and Drug Administration (FDA).

https://www.cfsanappsexternal.fda.gov/scripts/fdcc/?set=AnimalCellCultureFoods

A carne de frango cultivada produzida pela empresa privada de San Francisco, Eat Just, foi o primeiro produto de carne cultivada aprovado em Cingapura em dezembro de 2020, como ingrediente em nuggets. Segundo alguns cientistas, a autorização da “carne cultivada” foi relativamente informal e acelerada em Cingapura.

https://academic.oup.com/af/article/12/1/35/6550185

Carne Cultivada Sob o Microscópio

Scientist hold artificial lab grown meat in test tube

Photo 240885673 | Scientist Holding © Nevodka | Dreamstime.com

A competição mundial para acelerar a produção de carne cultivada parece crescer rapidamente.

A maior produtora global de carne bovina, a JBS SA, anunciou em junho passado um investimento de US$ 41 milhões na maior unidade de produção de carne bovina do mundo na Espanha, com conclusão prevista para 2024. A empresa também construirá um centro de pesquisa de biotecnologia e proteína cultivada em Santa Catarina, sul Brasil, representando um investimento de aproximadamente US$ 60 milhões.

https://mediaroom.jbs.com.br/noticia/jbs-is-entering-the-cultivated-protein-market-with-the-acquisition-of-bio-tech-foods-and-the-construction-of-a-plant-in-europe

“A nova planta de BioTech coloca a JBS em uma posição única para liderar o segmento e aproveitar essa onda de inovação”, disse Eduardo Noronha, head de negócios de valor agregado da JBS USA.

https://www.cellbasednews.com/news/brazils-jbs-starts-building-lab-grown-meat-factory-in-spain

O Reino Unido recebeu seu primeiro pedido para comercializar carne cultivada da startup israelense Aleph Farms. Embora os novos regulamentos alimentares do Reino Unido se assemelhem aos da UE pós-Brexit, eles estão atualmente explorando possíveis mudanças no processo de autorização de novos alimentos.

https://www.food.gov.uk/research/novel-and-non-traditional-foods-additives-and-processes/novel-foods-regulatory-framework-review-executive-summary

https://www.foodmanufacture.co.uk/Article/UK-receives-first-application-to-sell-cultivated-meat

Até o final de 2022, um total de 156 empresas se comprometeram a produzir carne e frutos do mar cultivados, apoiados por um investimento cumulativo de US$ 2,8 bilhões. A consultoria McKinsey prevê que o mercado de carne cultivada valerá US$ 25 bilhões até 2030.

https://gfi.org/resource/cultivated-meat-eggs-and-dairy-state-of-the-industry-report/

https://www.statista.com/statistics/1380437/cultivated-meat-market-value-forecast/?kw=&crmtag=adwords&gclid=EAIaIQobChMImIeJkYq8gAMVBbLtCh1f4w8LEAMYASAAEgKjPvD_BwE

Os Pioneiros

“Daqui a cinquenta anos, escaparemos do absurdo de criar uma galinha inteira para comer o peito ou a asa, cultivando essas partes separadamente em um meio adequado”, essas são as palavras de Winston Churchill, que previu a criação de “carne artificial ” em seu ensaio “Cinquenta Anos Daí.”

https://www.nationalchurchillmuseum.org/fifty-years-hence.html

O conceito de carne cultivada remonta a várias décadas, mas o termo “carne cultivada” foi popularizado pelo pesquisador e veterano da Segunda Guerra Mundial, Willem Frederik van Eelen, no início dos anos 2000. Ele registrou uma patente geral em 1997 sobre a produção de carne usando técnicas de cultura de células.

Carne Cultivada Sob o Microscópio
Scientist works with cultured cells
Photo 24385782 | Animal Cells © Anyaivanova | Dreamstime.com

O primeiro hambúrguer cultivado em laboratório, criado pelo professor Mark Post, foi apresentado em 2013. Em 2023, foi feito um hambúrguer cultivado a partir de células animais, um projeto liderado pelo professor Post e outros cientistas da Universidade de Maastricht, na Holanda.

Desde então, vários cientistas, pesquisadores e empresas acreditam firmemente no desenvolvimento dessa tecnologia avançada e em tornar a carne cultivada uma alternativa viável e potencialmente transformadora à produção de carne convencional.

O Processo

Na prática, o início da produção de carne cultivada envolve o cultivo de células de carne em laboratório, incluindo uma biópsia de um animal vivo ou recém-abatido, para que as células possam proliferar e se transformar em diferentes tipos, como adiposas e musculares. Outra opção é trabalhar com linhagens já estabelecidas, de modo que os animais não sejam necessários após uma biópsia inicial.

Essas células são transferidas para biorreatores onde são adicionados meios de cultura/crescimento, que podem incluir ácido fólico, nitrato férrico, hipoxantina Na, ácido lipóico, putrescina 2HCl, piruvato de sódio, timidina, pluronic F-68, soro fetal bovino (FBS), entre outras substâncias.

Os cientistas selecionam e cultivam cuidadosamente as linhagens de células para garantir que tenham as características desejadas para a produção de carne cultivada, como textura, sabor e taxa de crescimento.

Elas precisarão de um ambiente nutritivo e seguro para crescer e se multiplicar, então há a necessidade de introduzir meios de cultura celular que hes forneçam vitaminas, minerais e fatores de crescimento para apoiar o crescimento celular fora do corpo animal.

Scaffolds são estruturas 3D que fornecem suporte para as células crescerem e se organizarem em tecidos. Então são introduzidas para ajudar as células a se alinharem e formarem estruturas semelhantes a músculos, contribuindo para a textura do produto final.

Reivindicações e Preocupações

A indústria de carne cultivada reivindica uma série de benefícios que essa tecnologia pode trazer. Desde o potencial de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, ao consumo de água e o uso da terra, em comparação com a pecuária tradicional. Elimina a necessidade de criação e abate de animais o que reduz o sofrimento animal. Também cria um ambiente controlado de carne cultivada em laboratório e diminui o risco de doenças e contaminação. Portanto, requer menos recursos, como ração e antibióticos.

De acordo com o artigo publicado pela Oxford Academic, “Cellular Agriculture”: current gaps between facts and claims regarding “cell-based meat”, os autores explicam que as alegações da indústria de carne cultivada sobre melhorias de sustentabilidade (uso de energia ou água) não parecem ser fundamentado cientificamente. Permanecem como especulações, especialmente por sua pegada ambiental.

https://academic.oup.com/af/article/13/2/68/7123477

Além disso, os protocolos de produção não parecem estar disponíveis para testes independentes por acadêmicos ou agências reguladoras. Portanto, as alegações relacionadas ao conteúdo nutricional não podem ser verificadas como tal.

Não existem evidências plausíveis e dados independentes disponíveis sobre saúde e segurança. O que inclui em implicações de longo prazo para a saúde humana, impacto ambiental, econômico e avaliação científica de produtos cárneos cultivados.

E mais, a fabricação de carne de cultura pode não exigir o nível de biossegurança usado na indústria biofarmacêutica. Com isso em mente, erros podem ocorrer durante todo o processo.

Dúvidas pertinentes

Como parte do “material suplementar confidencial” do dossiê apresentado ao FDA pela Upside Foods, surgiu o questionamento sobre o processo da etapa de “inspeção visual da mídia”. Normalmente empregada para identificar possíveis riscos biológicos ambientais, introduzidos durante a etapa de preparação da mídia, a Administração se questiona: “‘como uma ‘inspeção visual da mídia’ pode ajudar a identificar potenciais riscos biológicos ambientais?”

Carne Cultivada Sob o Microscópio
Automatic bioreactor system
Photo 209886235 | Bioreactor © Ryzhov Sergey | Dreamstime.com

https://www.cfsanappsexternal.fda.gov/scripts/fdcc/?set=AnimalCellCultureFoods&id=002

Um grande número de perguntas permanece sem resposta, incluindo riscos biológicos durante o processo de produção de carne cultivada. Outro exemplo é o soro fetal bovino utilizado na mídia. Este tem o potencial de contaminar o produto com micoplasma, endotoxinas, vírus, medicamentos veterinários e príons.

De acordo com o material de dados do dossiê final da Upside Foods submetido ao FDA, algumas soluções classificadas como ‘Geralmente Reconhecidas Como Seguras’ (GRAS) podem ser usadas, incluindo cloreto de potássio, fosfato de potássio monobásico anidro, fosfato de sódio dibásico anidro, cloreto de sódio, antibióticos, antimicrobianos, antifúngicos, protetores transparentes, emulsificantes, entre outros. Alguns dos componentes usados ​​durante o processo de cultura da carne podem ser absorvidos pelas células e serem transferidos para o produto final.

https://www.cfsanappsexternal.fda.gov/scripts/fdcc/?set=AnimalCellCultureFoods&id=002

https://www.fda.gov/food/food-ingredients-packaging/generally-recognized-safe-gras

A CEO e fundador da Upside Foods, Uma Valeti, foi contatado para uma entrevista, mas não estava disponíve. O CEO da Good Meat, Josh Tetrick, foi contatado para uma entrevista. Aguardo uma resposta formal às questões que apresentei.

Muita calma nesta hora

No Reino Unido, a Food Standards Agency, FSA, destaca os possíveis perigos em produtos de carne fabricados a partir de células animais cultivadas. Isso inclui perigos nutricionais; contaminação de componentes usados ​​em cultura de células; infecções de cultura celular; infecções bacterianas e fúngicas. Também as infecções por microplasma; contaminação viral; infecções por endotoxinas; problemas de contaminação cruzada e identificação incorreta; e riscos associados à linha celular.

https://www.food.gov.uk/research/identification-of-hazards-in-meat-products-manufactured-from-cultured-animal-cells-hazards

De acordo com o este documento, algumas vitaminas, minerais e outros componentes nutricionalmente relevantes presentes na carne podem não estar presentes na carne cultivada. Citam avitamina B1277, creatina, carnosina, vitamina D3 e ferro.

https://www.food.gov.uk/research/identification-of-hazards-in-meat-products-manufactured-from-cultured-animal-cells-hazards

Outro aspecto vital a ser observado é o potencial dessa tecnologia ser controlada por corporações multinacionais. Relacionam-se a dependência de direitos de propriedade intelectual e as consideráveis ​​barreiras à entrada em tecnologia, economia e direito. Tal domínio pode levar à criação de alimentos exclusivos e de alta qualidade e exacerbar a questão dos desertos alimentares.

A Itália parece estar um passo à frente usando o “princípio da precaução” ao aprovar projeto de lei que proíbe a produção e comercialização de alimentos e rações sintéticos.

Altos custos

https://www.efanews.eu/en/item/33094-synthetic-food-bill-passes-in-the-italian-senate.html#:~:text=The%20bill%20prescribing%20a%20ban,by%20the%20Chamber%20of%20Deputies.

O conceito de substituir a carne tradicional por alternativas criadas em laboratório que possam alimentar a população, minimizando o impacto ambiental, é inegavelmente engenhoso. No entanto, o alto custo dessa tecnologia dificulta o acesso de muitas pessoas aos seus produtos. Você gastaria $50 em um hambúrguer cultivado em laboratório?

Também é crucial ter cautela e garantir testes rigorosos junto com estudos independentes, antes de adotar totalmente esses produtos.

Os regulamentos alimentares para produtos de carne cultivada devem ser discutidos globalmente, acompanhados por estudos de pesquisa imparciais e transparentes. Estudos que abordem de forma abrangente a saúde, segurança, ética, custos, escalabilidade, consequências ambientais e direitos de propriedade intelectual, garantindo a independência de conflitos de interesse.

Monica Piccinini – Jornalista Ambiental – Londres

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.