O apetite voraz do Brasil e demais interessados por Biocombustíveis reforça a preocupação de cientistas sobre modelo. O conceito expendido de Sustentabilidade quando atrelado ao capital mal se sustenta nesta questão.
Monica Piccinini
Londres, 20 de março de 2023.
6 Minutos.
Houve uma sensação de esperança e de grande alívio na cúpula do clima COP27 em Sharm el-Sheik, Egito, em novembro de 2022, quando o recém-eleito presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu acabar com o desmatamento na floresta amazônica até 2030.
“Não há segurança climática para o mundo sem uma Amazônia protegida. Faremos o que for preciso para zerar o desmatamento e a degradação dos nossos biomas até 2030”, afirmou Lula.
Lula e seu governo já estão enfrentando inúmeros novos desafios tentando conter o desmatamento na região. Essa tarefa pode não ser tão simples quanto parecia, exigindo medidas sensatas e robustas para reverter o desmonte das leis ambientais dos últimos anos.
O governo de Lula está tentando aproveitar uma oportunidade tremendamente lucrativa, esperando promover e desenvolver uma bioeconomia na Amazônia. Um dos setores atraindo altos investimentos para a região é a indústria de biocombustíveis.
A decisão do governo brasileiro de abrir a Amazônia para a expansão da produção de biocombustíveis, embora lucrativa, é extremamente preocupante.
Segundo cientistas e seus estudos, os impactos socioambientais dessa indústria podem ser catastróficos e um catalisador para o aumento das emissões de gases de efeito estufa, uso da água, degradação do solo, conflitos e desmatamento.
No Brasil, cientistas e pesquisadores renomados, Lucas Ferrante e Philip Fearnside, mencionaram que a eliminação gradual de petróleo e gás no cronograma imposto pelo limite de aquecimento global de 1,5°C, significa que o Brasil, como muitos outros países, deve ajustar seus planos de energia em vários setores , incluindo biocombustíveis.
https://www.nature.com/articles/d41586-023-00483-6
Segundo os dois cientistas, a Amazônia vai precisar de proteção contra o desmatamento para o cultivo de cana-de-açúcar e óleo de palma e deve usar seu mecanismo de zoneamento para excluir essas plantações da região. Ferrante e Fearnside pedem aos países importadores que se recusem a comprar biocombustíveis produzidos na Amazônia.

https://www.nature.com/articles/d41586-023-00483-6
A produção de etanol combustível no Brasil atingiu 7,42 bilhões de galões em 2022, representando 26% da produção global.
https://www.statista.com/statistics/968331/ethanol-production-brazil/
A produção de etanol de milho no Brasil aumentou quase 800% nos últimos cinco anos, passou de 520 milhões de litros na safra 2017/18 para 4,5 bilhões na safra 2022/23, e deve chegar a 10 bilhões de litros até 2030, segundo a CNI, Confederação Nacional da Indústria.
O Vício Histórico do Álcool no Brasil
O Brasil é o segundo maior produtor mundial de etanol combustível (atrás dos Estados Unidos) desde 2002.
A relação do país com a indústria do etanol é, sem dúvida, sólida e remonta à década de 1920, quando o governo começou a financiar pesquisas com etanol em automóveis. Em 1975, o governo militar criou o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) e em 1979 passou a desenvolver e lançar carros movidos a etanol.
Para reduzir as emissões de gases de efeito estufa até 2030 e se tornar neutro em carbono até 2050, o Brasil lançou, em 2017, o programa Renovabio, exigindo que as distribuidoras de combustíveis adquiram créditos de biocombustíveis, conhecidos como CBIOs, para cumprir suas metas de descarbonização.
https://www.nature.com/articles/d41586-020-00005-8
Há uma série de pontos de vista controversos entre os especialistas, destacando possíveis efeitos colaterais ambientais e sociais adversos como resultado deste programa.
O Renovabio foi criticado pelo número de CBIOs que precisam ser adquiridos definido pelo governo. Como não há cota proporcional ao número que precisa ser criado, afetando a disponibilidade e elevando o custo do combustível para as distribuidoras e, consequentemente, repassando para os consumidores. Além disso, também existe a possibilidade de que os altos preços do crédito impulsionem um grande número de novos projetos de etanol no país.
Em abril de 2022, um estudo publicado na revista Resources, Conservation and Recycling, indicou que a política do Renovabio não contempla os impactos da mudança de uso da terra (LUC) por meio de sua avaliação do ciclo de vida (LCA), para calcular as emissões de efeito estufa do biocombustível, movendo-se no direção oposta das políticas internacionais. A mudança de uso da terra e o desmatamento foram responsáveis por 45% das emissões de gases de efeito estufa do Brasil em 2019 (Observatório do Clima, 2020).
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0921344921007394
De acordo com pesquisadores da Universidade de Lancaster, se o mundo confiar na compensação de carbono e na esperança de tecnologias futuras para extrair carbono da atmosfera, em vez de reduzir as emissões na fonte, poderá ocorrer um aquecimento extra de até 1,4°C.
https://policy.friendsoftheearth.uk/insight/dangerous-distraction-offsetting-con
Em janeiro, o resultado de uma investigação conjunta do The Guardian, da Source Material e do alemão Die Zeit, sugeriu que as compensações de carbono aprovadas pela Verra, a principal certificadora de créditos de carbono do mundo, são inúteis. Com base na análise, mais de 90% de seus créditos de compensação de florestas tropicais não representam reduções genuínas de carbono.
Investidores, financiadores, bancos, corporações e governos adoram a ideia de compensação de carbono, pois gera capital, um novo setor comercial lucrativo para os mesmos explorarem.

Biocombustíveis – Uma Perspectiva Alternativa
Os biocombustíveis são produzidos a partir de biomassa renovável, com base em produtos agrícolas, incluindo cana-de-açúcar, milho, mamona, óleo de palma e matérias-primas de origem animal.
“Nós precisamos aumentar o percentual do bio[diesel] no diesel. Está em 10%, já foi 13%, foi reduzido no governo passado para 10%. Isso prejudica o meio ambiente, prejudica a indústria, gera menos emprego, agrega menos valor”, Geraldo Alckmin, vice-presidente do Brasil em fevereiro.
http://minaspetro.com.br/noticia/geraldo-alckmin-defende-aumento-da-mistura-do-biodiesel/
Os mandatos de biocombustíveis em vários países criaram um mercado insaciável para culturas, como milho, cana-de-açúcar, óleo de palma, grãos e muito mais.
A República Tcheca adotou uma abordagem completamente diferente. Em março de 2022, seu governo decidiu encerrar um mandato exigindo que o etanol fosse misturado à gasolina, uma medida tomada para enfrentar o aumento do custo do combustível e dos alimentos. A Alemanha e a Bélgica estão considerando flexibilizar os mandatos de mistura de biocombustíveis para endereçar a segurança alimentar.
De acordo com um grupo de campanhas ambientais com sede em Bruxelas, Transporte e Meio Ambiente, o índice de preços de alimentos da FAO para óleos vegetais atingiu um recorde histórico em 2021, aumentando mais de 70%, em comparação com os cinco anos anteriores. Para cereais (trigo e milho), o aumento foi de mais de um terço em 2021.
https://www.transportenvironment.org/wp-content/uploads/2022/03/202203_Food_not_Fuels.pdf
Para muitos desses óleos vegetais e cereais, o aumento de preço está ligado à demanda por biocombustíveis, impulsionada por políticas equivocadas baseadas na crença de que os biocombustíveis podem ajudar a reduzir as emissões de gases de efeito estufa no setor de transporte – o que não acontece.

Maik Marahrens, gerente de biocombustíveis da Transport & Environment, disse: “No momento, entregamos vastas extensões de terra para plantações que simplesmente queimamos em nossos carros. É um desperdício escandaloso. Esta terra poderia alimentar milhões de pessoas ou, se devolvida à natureza, fornecer sumidouros de carbono ricos em biodiversidade.
Os biocombustíveis agrícolas são provavelmente a coisa mais estúpida já promovida em nome do clima”. No cerrado, interior da Bahia e noutras regiões já afetadas pelo desmatamento investe-se, atualmente, na pesquisa do cultivo e uso do Agave (de onde vem a Tequila) para a produção de bioetanol.
“Os biocombustíveis são uma experiência fracassada. Continuar a queimar alimentos como combustível enquanto o mundo enfrenta uma crescente crise global de alimentos é quase um crime.
Países como a Alemanha e a Bélgica estão discutindo a limitação de biocombustíveis de culturas alimentares em resposta. O resto da Europa deve seguir o exemplo”, acrescentou Marahrens.
O Dr. Giuseppe Bagnato, professor de engenharia química na escola de engenharia da Universidade de Lancaster, trabalha na produção de biocombustíveis desde 2010. Durante nossa conversa este mês, ele mencionou: “A biomassa comestível, como as culturas alimentares, não pode ser considerada uma estratégia a longo prazo para a produção de biocombustíveis, devido ao uso da terra, à pegada hídrica, ao impacto ambiental, um exemplo é o desmatamento para o cultivo de óleo de palma, levando também à concorrência de preços entre seu uso como combustível ou comida”,
“Governos locais e empresas de toda a sociedade devem aceitar que a transição para um futuro sustentável deve ser impulsionada pelo investimento por meio da economia circular: valorização de resíduos para produzir bens e serviços para nossa comunidade”, Bagnato acrescentou.
Segundo o falecido professor de ecologia e ciências agrícolas da Cornell University, Dr. David Pimentel, e seus inúmeros estudos, simplesmente não há terra, água e energia suficientes para produzir biocombustíveis.
Há também uma série de problemas ambientais ligados à conversão de culturas para biocombustíveis, incluindo a poluição da água por fertilizantes e pesticidas, aquecimento global, poluição do ar e erosão do solo.
https://www.researchgate.net/scientific-contributions/David-Pimentel-5054723
Pimentel fez alguns cálculos, somando todas as importações para a produção de etanol, incluindo maquinaria, sementes, mão-de-obra, água, electricidade, fertilizantes, insecticida, combustível, electricidade e transportes. Ele descobriu que para produzir 1 litro de etanol combustível (5.130 kcal), seria necessário um aporte energético de 6.600 kcal, tornando a produção de biocombustíveis um processo de energia negativa.
Os autores do estudo, Biofuels Ignite Food Crisis Debate, concluíram o seguinte:
https://www.sciencedaily.com/releases/2009/01/090128074830.htm
“Cultivar safras para biocombustíveis não apenas ignora a necessidade de reduzir o consumo de recursos naturais, mas também agrava o problema da desnutrição em todo o mundo ao transformar grãos alimentares em biocombustíveis. O aumento do uso de biocombustíveis prejudica ainda mais o meio ambiente global e especialmente o sistema alimentar mundial”.
Os resultados de um estudo dos EUA, Environmental Outcomes of the US Renewable Fuel Standard, demonstraram que a alta demanda por cultivos para uso como matéria-prima de biocombustíveis e as mudanças associadas nas paisagens também podem pôr em risco desserviços ambientais mais amplos sobre águas subterrâneas e superficiais, recursos do solo e outros componentes do ecossistema.
https://www.pnas.org/doi/pdf/10.1073/pnas.2101084119
Empresas Brasileiras de Biocombustíveis & Violações de Direitos Humanos
De acordo com uma investigação da Global Witness, a Agropalma e a Brasil Biofuels (BBF), duas empresas gigantes brasileiras do óleo de palma, foram acusadas de envolvimento em conflitos com comunidades locais no estado do Pará.
https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/amazon-palm/
A BBF foi acusada de crimes ambientais e de realização de campanhas violentas para silenciar comunidades indígenas e tradicionais. A empresa registrou mais de 550 boletins de ocorrência contra membros da comunidade na tentativa de silenciar os protestos dos povos indígenas.

A empresa atua no coração da Amazônia, assim como nos estados do Acre, Pará, Rondônia e Roraima. Na Amazônia, a BBF tem duas termelétricas e está construindo uma nova biorrefinaria, além de uma usina de produção de biodiesel.
A Agropalma estava ligada à remoção de comunidades e grilagem de terras. A empresa controla 107 mil hectares de terras, equivalentes a 150 mil campos de futebol.
https://www.brasilbiofuels.com.br/en/
Em fevereiro, a Agropalma teve sua certificação de óleo de palma suspensa por violação dos critérios da Mesa Redonda do Óleo de Palma Sustentável, RSPO, do IBD, a maior certificadora da América Latina.
As plantações de dendê no estado do Pará cobrem uma área que antes era floresta tropical, aproximadamente 226.834 hectares, quase o tamanho de Luxemburgo.
https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/amazon-palm/
Segundo estudo dos cientistas Lucas Ferrante e Philip Fearnside, publicado na revista Land Environmental Change, as empresas de biocombustíveis, entre elas a Millenium Bioenergia, estão consolidando uma cadeia produtiva de biocombustíveis e alimentos a partir de monoculturas em terras indígenas amazônicas e outras comunidades tradicionais.
https://link.springer.com/article/10.1007/s10113-021-01819-6
A Millenium anunciou que faria “parceria” com comunidades indígenas e tradicionais, oferecendo-lhes trabalho não remunerado para produzir milho, peixe, galinhas, porcos e gado confinado. Isso não apenas viola os direitos humanos, mas também tem o potencial de desencadear novas pandemias como resultado de saltos zoonóticos devido à degradação ambiental.
Todos nós temos um objetivo comum, que é extremamente desafiador: combater as mudanças climáticas protegendo o que resta de nossa fauna e flora, indígenas e comunidades tradicionais, e evitar um declínio maior da biodiversidade, desmatamento e devastação.
A transição de combustíveis fósseis para biocombustíveis parece ser a solução mais fácil e lucrativa, mas vários estudos sugerem que essa pode não ser a solução perfeita e pode ter um forte impacto em todas as nossas vidas, incluindo segurança alimentar, escassez de água, uso da terra e o meio ambiente.
Cultivar alimentos para obter energia parece completa e totalmente irracional. Esta não é uma tecnologia verde.
Por que os governos continuam a subsidiar esta indústria?
Nossos líderes, governos e corporações devem entender que o preço para salvar o nosso planeta custará caro no curto e médio prazo, mas será lucrativo e essencial no longo prazo.
Monica Piccinini – Jornalista Ambiental – Londres