A PERDA DO MUIRAQUITÃ.

A PERDA DO MUIRAQUITÃ.

O ícone sagrado, o objeto de contato, o elo fundamental e todos os poderes “mágicos” da vida no planeta, representado pelos nossos ancestrais no Muiraquitã. Pedra símbolo da nossa elementar ligação com a Terra.

No fundo do mato virgem nasceu a agricultura. Não a moderna, da mecanização, dos pacotes químicos e do crédito rural, mas a agricultura ancestral. Porém, aquela que brotou da relação íntima entre o ser humano e a terra. Como Macunaí­ma, herói sem nenhum caráter, a agricultura brasileira também teve seu amuleto. Ou seja, um elo sagrado com a natureza, que a tornava parte do ciclo da vida, e não um agente de sua ruptura.

Este amuleto, que aqui chamamos de Muiraquitã agrí­cola, foi um dia ofertado pelos espíritos da floresta, pela sabedoria dos povos originários. Pelos ciclos do Cerrado, da Caatinga, da Mata Atlântica e das várzeas amazônicas. Entretanto, como na obra de Mário de Andrade, esse amuleto foi perdido.

Pedra rara, milenar- Simbólica
A PERDA DO MUIRAQUITÃ.
Muiraquitã Tapajós (Img. Web)

O Muiraquitã, na mitologia amazônica*, é uma jóia sagrada entregue por seres encantados como prova de amor. Em Macunaí­ma, é o símbolo do ví­nculo com Ci, a deusa da floresta. Portanto, sua perda marca o iní­cio da decadência do herói. Sua desorientação e sua fuga.

De maneira análoga, a perda do Muiraquitã Agrí­cola representa o momento em que a agricultura brasileira se desvia de sua essência ecológica e cultural. É quando esta é atraí­da/capturada pela promessa de um progresso artificial, mecanicista e predatório.

O crescente império Cinza

Contudo, a agricultura de subsistência tradicional, seja indí­gena, quilombola, ribeirinha ou camponesa, cultivava mais do que alimentos. Criava paisagens, conservava sementes, honrava os ciclos da chuva e do solo.

As boas técnicas perdidas

Os sistemas agroflorestais, as roças de coivara, os quintais biodiversos e os calendários lunares revelavam um saber profundo, enraizado na convivência com o ambiente. Enfim, o trabalho agrí­cola era uma prática ecológica e espiritual, guiada por limites, reciprocidade e gratidão.
Isso era a Muiraquitã: o equilí­brio entre produzir e preservar.

Pietro Pietra, o antagonista de Macunaí­ma, é um capitalista voraz que devora tudo. No campo, ele se materializa nas corporações que controlam sementes, transgênicos, insumos (agrotóxicos) e cadeias produtivas. Seu apetite é insaciável. Assim, para ele, a terra é recurso; a água, mercadoria; o agricultor, mera mão de obra. Ou seja, nesse cenário, o agricultor deixa de ser guardião da fertilidade e torna-se operador de máquinas e de dívidas. A floresta vira pasto. O cerrado vira soja. A diversidade vira praga.

A fertilidade do solo vira estatística de produtividade.

A perda da muiraquitã agrí­cola não é apenas simbólica. Além disso ela se traduz em erosão dos solos, contaminação das águas, êxodo rural, insegurançaa alimentar, colapso climático. Assim, também se traduz na perda de autonomia. Portanto, o agricultor que antes salvava sementes agora compra insumos a preços flutuantes, dependente de um mercado que não domina. Como Macunaí­ma, que vagueia sem direção depois da perda de sua pedra mágica, o agricultor moderno muitas vezes não sabe mais o sentido de sua lida.

Afonso Peche Filho – Pesquisador Cientí­fico do Instituto Agronômico de Campinas.

*Muiraquitã na mitologia amazônica mais aqui.

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