Quem controla o Alimento do Mundo?

Quem controla o Alimento do Mundo?

Quem Controla o que Cultivamos e Comemos?

Monica Piccinini

Londres, 08 de Maio de 2023

9 Minutos.

Semelhante aos nossos sistemas políticos e econômicos atuais, o sistema alimentar não está mais nos servindo; impulsionados principalmente pelo poder, lucro e ganância, resultam em insegurança alimentar global e impactam diretamente a nossa saúde e o meio ambiente.

Percebemos haver um aumento acentuado da insegurança alimentar em todo o mundo. Esta é impulsionada não apenas pelas mudanças climáticas e múltiplos conflitos, mas também por um sistema alimentar desequilibrado alimentado pelo poder corporativo.

Como a população mundial está projetada para atingir 9,8 bilhões nos próximos 27 anos, há uma necessidade urgente em abordar questões relacionadas ao nosso sistema alimentar. Ou podemos enfrentar uma fome mundial mais cedo do que o esperado. Já vemos sinais disso em muitas partes do mundo.
https://www.un.org/en/desa/world-population-projected-reach-98-billion-2050-and-112-billion-2100

“O direito à alimentação é o direito de ter acesso regular, permanente e irrestrito – seja diretamente ou por meio de aquisições financeiras – a uma alimentação quantitativa e qualitativamente adequada e suficiente. Ela deve corresponder às tradições culturais do povo ao qual o consumidor pertence e que lhes garanta uma vida física e mental, individual e coletiva, plena e digna, livre de medo”, de acordo com as Nações Unidas.
https://www.ohchr.org/en/special-procedures/sr-food/about-right-food-and-human-rights

Poder Corporativo

Corporações gigantes do agronegócio detêm o poder e o controle sobre nossos sistemas alimentares. Têm a capacidade de influenciar governos e tomadores de decisão, por meio de lobbys, com a intenção direta de moldar as políticas de várias maneiras.

Seus objetivos e táticas são questionáveis, com tendência a favorecer seus próprios interesses, focando nos lucros e na maximização do valor para os acionistas, ao invés de enfrentar a fome e a desnutrição.

De acordo com ‘Who’s Tipping the Scales‘, um relatório publicado pelo IPES Food, o painel internacional de especialistas em sistemas alimentares sustentáveis:

http://www.ipes-food.org/pages/tippingthescales

“É urgentemente necessária uma visão ousada e estrutural para combater a aquisição corporativa da governança global relacionada a alimentos – que apoie papéis centrais para pessoas, governos e tomadas de decisão democráticas e baseadas no interesse público”.

Quem controla o Alimento do Mundo?
O poder das corporações interessadas em seus lucros estupendos .(Photo 77536321 © Daniil Peshkov | Dreamstime.com)

As vozes das comunidades mais vulneráveis, em todo o mundo, e os mais afetados pela fome e pelo impacto ambiental causado por esta indústria, devem ser ouvidas.

Essas corporações gigantes e dominantes do agronegócio influenciam as organizações globais em que mais confiamos, e que deveriam defender nossos interesses.

Para surpresa de muitos, as associações de agronegócios estavam sentadas diretamente na mesa de governança da ONU no UNFSS 2021, UN Food Systems Summit.

Deve-se também questionar o tipo de relacionamento entre o setor privado e órgãos e instituições internacionais de governança sobre potenciais conflitos de interesse.

Gigantes insensíveis querem lucros e poder

De acordo com o relatório do IPES Food, em 2020, uma fundação filantrópica privada, a Fundação Bill e Melinda Gates, foi o segundo maior doador do CGIAR, o Grupo Consultivo de Pesquisa Agrícola Internacional.

http://www.ipes-food.org/pages/tippingthescales

Outra parceria que deve-se questionar é a da FAO, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, com a CropLife International, CLI, uma organização de lobby agroquímico, cujos membros incluem Syngenta, BASF, FMC e Bayer (adquiriu a Monsanto em 2018).
https://www.panna.org/blog/pan-mobilizes-hundreds-75th-world-health-day

A PAN North America, Pesticide Action Network, mencionou que em vez de colocar o lucro dos membros da CropLife International acima dos agricultores e consumidores em todo o mundo, a FAO deveria investir em soluções, incluindo agroecologia e tomar medidas mais fortes para acabar com o uso de pesticidas altamente perigosos, HHPs.

Também vimos o aumento das consolidações, um grande número de fusões e aquisições, permitindo que essas corporações dominassem o setor do agronegócio. Isso permite que esses gigantes tenham uma influência profunda na governança e na estrutura do nosso sistema alimentar, resultando em práticas de mercado anticompetitivas.

Nossa Saúde e Meio Ambiente

Essas corporações têm fundos significativos à sua disposição para influenciar políticas e regulamentações, como os dos agrotóxicos, biossegurança, patentes, propriedade intelectual, bem como acordos comerciais e de investimento.

A Bayer AG gastou mais de US$ 9 milhões fazendo lobby junto ao governo dos Estados Unidos em 2019, após adquirir a Monsanto. Na época, eles analisavam o recadastramento de um dos principais produtos da empresa, o glifosato (Roundup), considerado um herbicida tóxico. Nos Estados Unidos, a Bayer tem contestado bilhões de dólares em acordos para encerrar processos judiciais sobre acusações de que o glifosato causa câncer.

Eles também são responsáveis por moldar a ciência, ao patrocinar pesquisas acadêmicas que favorecem seus interesses corporativos, influenciando a governança e as políticas. Isso foi visto nos setores de agroquímicos e alimentos processados.

Como prova disso, segue abaixo um e-mail interno entre executivos da Monsanto obtido por advogados que representam os demandantes no litígio do Roundup®, onde eles sugerem ‘dar uma surra em’ um grupo de mães que expressa preocupação com os efeitos dos OGMs e do Roundup® em seus filhos.
https://www.mainstreetlawfirm.com/post/monsanto-ghost-writing-revealed

Quem controla o Alimento do Mundo?
Foto: Main Street Law Firm PLLC

A Monsanto também tentou influenciar a ciência patrocinando vários artigos acadêmicos de autoria fantasma questionando estudos científicos que levantavam preocupações sobre a segurança de seu produto, o glifosato.
https://www.gmwatch.org/en/106-news/latest-news/20021-how-the-ghouls-of-monsanto-influenced-science-and-the-media

Outra questão muito preocupante relacionada à saúde de nossas crianças é o fato de que essa indústria faz lobby contínuo contra medidas obrigatórias de saúde pública. Isto incluindo impostos sobre alimentos ultraprocessados, bebidas açucaradas e rotulagem frontal, bem como restrições à comercialização de alimentos não saudáveis, para nossos filhos. Isso produz um impacto gigantesco na saúde dos mesmos, e ao mesmo tempo cria pressão em nossos sistemas de saúde.

Buscando o poder, sempre

Sobre o assunto, um fabricante de cereais infantis tentou processar o México depois que o serviço de saúde do país procurou alterar um rótulo da embalagem de alimentos chamado NOM-5. A tentativa era proteger suas crianças da comercialização de alimentos não saudáveis. A regulação do país estabelecia que determinados produtos não saudáveis estavam proibidos de utilizar animações e personagens infantis em suas embalagens.
https://ccsi.columbia.edu/news/childrens-cereal-company-v-mexico-corporate-use-investor-state-dispute-settlement-influence

A invenção de novos alimentos também levanta algumas bandeiras vermelhas. Em março, The Defender, publicação que defende a saúde infantil, publicou um artigo sobre a última invenção de Bill Gates.. Uma cobertura comestível para alimentos chamada Apeel, inodora, incolor e insípida para vegetais e frutas, e que potencialmente prolonga a vida útil de desses produtos, mantendo-os frescos por até duas vezes mais.

Sem cheiro, sem sabor, invisível. É seguro? É para ser comido em Marte? (Img.Web)

A Apeel já recebeu sinal verde dos reguladores dos EUA, mas algumas questões ainda permanecem sem resposta em relação à segurança do produto, já que a empresa está contando somente com estudos científicos existentes, e nenhum novo teste cientifico foi requerida para avaliar o produto.

Estamos completamente expostos e dependentes dessas corporações para realizar seus próprios estudos de segurança, sem o escrutínio de reguladores independentes e outras análises científicas.

De acordo com os Princípios Orientadores sobre Negócios e Direitos Humanos da ONU de 2011, espera-se que as empresas desenvolvam seus próprios procedimentos internos para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas de como lidam com seus impactos sobre os direitos humanos e ambientais nas cadeias de suprimentos globais

https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/Issues/Business/Intro_Guiding_PrinciplesBusinessHR.pdf

Distante de preocupações naturais

É evidente que a forma como cultivamos nossos alimentos tem um impacto enorme não apenas em nossa saúde física e mental, mas também em nosso meio ambiente, afetando a fauna e a flora, a saúde de nosso solo, água e ar.

Recentemente, observamos um aumento acentuado de doenças fúngicas nas lavouras, afetando 168 lavouras listadas como importantes na alimentação humana, segundo a FAO das Nações Unidas. Apesar de pulverizar fungicidas, os agricultores estão perdendo entre 10-23% de suas colheitas para doenças fúngicas todos os anos, incluindo arroz, milho, soja e batata.

Alimentos processados e Agroindustrializados (Illustration 273587833 / Food Food © Altitudevs | Dreamstime.com)

De acordo com um estudo publicado na revista Nature, esse problema se deve principalmente à adaptabilidade dos fungos para atender às práticas agrícolas modernas.

As monoculturas envolvem vastas áreas de culturas geneticamente uniformes, um terreno ideal para organismos de rápida evolução, como fungos.

Outro problema é o uso cada vez mais generalizado de tratamentos antifúngicos, levando à resistência a fungicidas.

https://www.nature.com/articles/d41586-023-01465-4

O uso de pesticidas e produtos químicos tóxicos está aumentando exponencialmente em todo o mundo, causando estragos à nossa saúde, ao solo, poluindo as fontes de água, o ar, animais e plantas.

A agricultura industrial, incluindo pecuária, soja, óleo de palma, cana-de-açúcar, milho, trigo, transgênicos, produção de monoculturas, é responsável pelo desmatamento das florestas tropicais, do Cerrado e de muitas outras partes do mundo, causando destruição e degradação.

No Brasil, 2,8% dos proprietários de terra possuem mais de 56% de todas as terras aráveis, e 50% dos pequenos agricultores têm acesso a apenas 2,5% das terras. No geral, a terra está nas mãos de um pequeno número de fazendas industriais.

https://www.oaklandinstitute.org/blog/brazil-ravages-industrial-agriculture-cerrado-amazon

Devemos repensar a forma como cultivamos nossos alimentos, pois todos temos o direito de acesso a alimentos nutritivos e saudáveis​, bem como decidir o que comemos.

Agricultura Digital

O setor de agronegócios gasta grandes quantias em pesquisa e desenvolvimento, tornando extremamente difícil para empresas menores competir com eles, capitalizando a proteção de patentes e direitos de propriedade intelectual.

Por que? Porque eles podem! A proteção de patentes e propriedade intelectual é outro assunto que deve chamar a atenção de todos.

Gigantes da tecnologia, como Amazon e Microsoft, entre outras, entraram no setor alimentício com foco em poder, controle e lucro. Pequenos agricultores e sistemas alimentares locais estão lutando, pois não podem se dar ao luxo de usar essa tecnologia de coleta de dados de alta tecnologia. Eles também estão localizados em áreas remotas onde esses tipos de serviços não podem chegar.

Podemos observar um movimento crescente de poderosa integração e controle entre as empresas e as gigantes da tecnologia fornecedores de produtos aos agricultores, como tratores, drones, defensivos, etc. Eles alimentam e controlam os agricultores com informações e, ao mesmo tempo, têm acesso direto aos consumidores.

A agricultura digital pode ser uma armadilha para trabalhadores.
(Photo 225876642 © Andrey Popov | Dreamstime.com)

O objetivo é integrar milhões de agricultores em uma ampla rede controlada centralmente, incentivando e forçando-os a comprar seus produtos. Essa infraestrutura digital é executada por plataformas desenvolvidas por empresas de tecnologia que executam serviços em nuvem.

Lucros e poder. Eis o que importa!

Os trabalhadores da fazenda Fujitsu, localizada nos arredores de Hanói, carregam smartphones fornecidos pela empresa, que monitoram todos os seus movimentos, produtividade, horas trabalhadas etc., tudo armazenado na nuvem da empresa. Isso é extremamente preocupante, pois essa prática pode facilmente levar à exploração do trabalho.

Semelhante à Fujitsu, outras empresas que investem altamente nesse tipo de plataforma de agricultura digital incluem Azure FarmBeats da Microsoft, Fieldview da Bayer, Xarvio da BASF, CropWise da Syngenta, Yaralrix da Yara e OFIS da Olam, Olam Farmer Information System.

É essencial destacar a extensão da coleta de dados dessas plataformas, incluindo dados e análises em tempo real sobre as condições do solo e da água dos agricultores, crescimento das culturas, monitoramento de pragas e doenças, clima, umidade, mudanças climáticas, monitoramento de tratores, etc.

Algumas dessas corporações também estão tentando eliminar os “intermediários” vendendo diretamente aos consumidores, o que pode ser uma proposta atraente para muitos, se a ideia for principalmente ajudar agricultores e pequenos vendedores diretamente. Entretanto, de alguma forma eles podem usar plataformas digitais para aumentar seu poder de precificação sobre os agricultores.


Quem está mesa diretora, afinal?

Uma pergunta importante que devemos fazer a essas empresas, reguladores e nossos governos: quem controla todos esses dados, o que eles fazem com os mesmos e quem dá conselhos?

A influência que algumas corporações poderosas têm na governança alimentar deve ser examinada. Os governos devem liderar no campo da segurança alimentar e não deixá-lo nas mãos de quem coloca o lucro acima da longevidade da vida. Pode parecer uma mudança drástica no mundo como o conhecemos, mas pode ser a única maneira de trazer de volta o equilíbrio no sistema alimentar global e garantir nossa qualidade de vida e, finalmente, nossa sobrevivência.


Monica Piccinini – Jornalista Ambiental – Londres. Para AEscolaLegal

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