Ciência versus Ruína - BR-319

Ciência versus Ruína – BR-319

Artigo da jornalista Monica Piccinini (Londres – GB) com cientistas do INPA faz o alerta: “A ambiciosa reconstrução da rodovia BR-319 pode ser um catalisador para o desmatamento desenfreado com consequências irreversíveis e catastróficas para a floresta tropical.” Clique nos links em vermelho.

Monica Piccinini

Londres, Inglaterra – 23 de Fevereiro de 2023.

5 Minutos.

Segundo dois cientistas e pesquisadores proeminentes, Lucas Ferrante e Philip Fearnside, e o resultado de seus estudos, a ambiciosa reconstrução da rodovia BR-319, ligando a capital Manaus, na Amazônia central, à borda sul da floresta, em Porto Velho (Rondônia) às margens do Rio Madeira, pode ser um catalisador para o desmatamento desenfreado com consequências irreversíveis e catastróficas para a floresta tropical.

A BR-319, e o trecho de 830 km que liga o ‘arco do desmatamento‘, foi inaugurada em março de 1976, durante a ditadura militar, no governo do general Ernesto Geisel, e abandonada em 1988. Em 2015, o governo Dilma Roussef propôs a sua reabertura.

“A BR-319 corta um dos blocos mais preservados da floresta, onde contém um enorme estoque de carbono. Esse projeto é uma ameaça para 63 terras indígenas e 18 mil indígenas, sem contar o meio ambiente e a biodiversidade”, comentou Lucas Ferrante, cientista ambiental.

Ciência versus Ruína - BR-319
Mapa com trecho da BR 319 em lilás. (Img. cedida)

Apesar dos alertas dos cientistas sobre as consequências negativas que esse projeto pode trazer para a região, ele é considerado uma prioridade para o novo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva.

Em entrevista a uma rádio de Manaus em setembro passado, ele mencionou:

“Nós não queremos transformar o estado do Amazonas num santuário da humanidade. Moram milhões de pessoas no estado do Amazonas. Nós temos que dar a essa gente o direito de civilidade, o direito de viver bem, o direito de ir e vir.

É plenamente possível você trabalhar corretamente a questão climática, trabalhar corretamente a questão ambiental e dar a segurança necessária para que possa fazer boas estradas que possam interligar o estado do Amazonas com o restante do país.”

O que tem de sair do papel

Entretanto, segundo Lucas Ferrante, o novo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, replica a bravata política de que é possível estabelecer uma governança territorial.

“Precisamos deixar algumas coisas claras, essa é apenas uma retórica política, uma bravata que não se consolida. De acordo com um estudo que publicamos na Land Use Policy, a área da rodovia BR-319 apresentou uma taxa de desmatamento até 2.6 maior que as taxas observadas em outras partes da Amazônia. Ou seja, o estado do Amazonas não é mais um santuário isolado, mas uma área cada vez mais ocupada pelas organizações criminosas que fomentam a grilagem de terras e o desmatamento”, argumenta o cientista.

Além disso, as pessoas sempre tiveram o direito de ir e vir por outros modais de transporte, mas elas não têm direito de colapsar um dos blocos de floresta mais biodiversos, que abriga uma grande variedade de povos nativos e que consequentemente, se desmatado, poderia colapsar o clima global”, adicionou.

Ver artigo na revista (clique) – Science Direct

Estudos Científicos Alertam

Lucas Ferrante, cientista ambiental, e Philip Fearnside, são biólogos , pesquisadores e doutores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Philip é vencedor do Prêmio Nobel da Paz de pesquisa climática (2007), e já publicaram vários estudos científicos destacando os efeitos negativos desse projeto na floresta amazônica.

A rodovia é um caminho livre para estradas vicinais ilegais em áreas de grande concentração de terras indígenas, reservas legais e unidades de conservação, dando aos garimpeiros, madeireiros, posseiros e grileiros ilegais acesso às florestas intocadas e terras públicas.

Como consequência, esses invasores estão trazendo uma onda de destruição, instabilidade, poluição, violência, doenças, decadência e morte para as comunidades tradicionais, povos indígenas e o meio ambiente ao seu redor.

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Vítima de assassinato na estrada. (Img. cedida)

Em outubro de 2021, o jornalista do Washington Post, Terrence McCoy e o cientista Lucas Ferrante (clique) embarcaram em uma viagem ao longo da rodovia BR-319, mostrando o caminho da destruição e devastação causada pelo desmatamento ilegal, grilagem, mineração, incêndios, violência e até assassinatos.

O corpo queimado de um homem morto foi encontrado no caminho depois que ele denunciou atividades de grilagem na área à Polícia Federal.

Em 2017, prédios do IBAMA (Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em Humaitá, foram incendiados por garimpeiros e permanecem inoperantes.

Estima-se que a BR-319 e as vicinais planejadas gerem um aumento da área desmatada em mais de 1.200% entre a rodovia e a fronteira do Brasil com o Peru. Essa projeção refere-se apenas à Amazônia central, se estendida ao Peru, os números aumentariam significativamente.

Segundo artigo científico publicado na revista Land Use Policy por Phillip Fearnside e Ferrante, apesar da legislação ambiental exigir um estudo de impacto ambiental (EIA) para um dos trechos da rodovia, o projeto recebeu sinal verde de um juiz, que autorizou sem um EIA.

Além disso, a reconstrução da rodovia carece de estudo de viabilidade econômica, EVTEA, exigido pela lei 5.917/1973, bem como consulta aos indígenas exigida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela lei brasileira 10.088/2019.

A principal via de transporte utilizada na região sempre foi o Rio Madeira, uma forma mais barata, limpa e segura de transportar mercadorias.

Fernanda Meirelles, secretária executiva do Observatório BR-319, comentou durante nossa entrevista no início deste mês:

“A LP (Licença Previa) foi expedida sem que as consultas as comunidades e povos indígenas fossem realizadas, uma etapa importante do processo que não foi respeitada. Não sabemos se nesse governo atual as consultas serão realizadas ou se será necessária uma intervenção do MPF (Ministério Público Federal) para cumprir a obrigação das consultas”,

“Foram feitas audiências públicas durante a pandemia, mas de uma forma inadequada. Não houve apoio logístico que garantisse a presença das comunidades e dos povos indígenas, além de terem sido realizadas em um momento muito inóspito para qualquer tipo de opinião contrária ou manifestação. Inclusive, presenciamos agressões sofridas pelo pesquisador e cientista, Philip Fearnside, durante essas audiências públicas”, comentou Meirelles.

Segundo dados divulgados pelo SEEG, o Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa, entre 2018 e 2019, os municípios do entorno da BR-319 tiveram um aumento impressionante de 16% nas emissões de gases de efeito estufa, provenientes do uso da terra e da agricultura. O relatório pode ser visto neste link.

A reabertura dessa rodovia também daria acesso ao agronegócio a mais terras para expansão, incluindo pecuária, plantações de soja e dendê, expansão de monoculturas para produção de biocombustíveis em larga escala, bem como empresas de combustíveis fósseis, hidrelétricas, mineração, etc.

Como indicam diversos estudos, inclusive os publicados no Land Use Policy (clique PDF) e Environmental Conservation (clique), essas práticas já acontecem com as obras de manutenção da via e aumentariam exponencialmente com a reconstrução da BR-319.

Ainda não há informações sobre os custos e fontes de recursos para este projeto gigantesco. O mesmo se aplica a um projeto de sistema de monitoramento e manejo, que inclusive, é essencial, mas que nunca foi apresentado.

Beneficiadores – Todos os Olhos Voltados para a Amazônia

Existem inúmeros políticos, corporações, agências governamentais e organizações com um interesse oculto ou visível na reconstrução da BR-319 esperando que ela seja bem-sucedida. Este projeto é uma porta de entrada para um paraíso de recursos naturais esperando para serem explorados e a rodovia tornará a jornada dos interessados um processo muito mais tranquilo.

Segundo Fearnside, a Rosneft, gigante russa de petróleo e gás, com direitos de perfuração em 16 blocos de extração localizados a oeste da BR-319, a aproximadamente 35 km do rio Purus, na bacia do Solimões, seria uma das beneficiárias do projeto .

Outro setor bastante preocupante é a produção de biocombustíveis na Amazônia. Os biocombustíveis são produzidos a partir de produtos agrícolas, incluindo cana-de-açúcar, milho, mamona, óleo de palma e matérias-primas de origem animal.

Segundo relatório da Global Witness, o BBF Group (Brasil Biofuels) e a Agrapalma, duas gigantes brasileiras do óleo de palma (azeite de dendê), são acusados de várias violações na Amazônia, incluindo conflitos com comunidades locais, campanhas violentas para silenciar comunidades indígenas e grilagem de terras. Leia aqui.

A BBF é a maior produtora de óleo de palma da América Latina, atuando também na geração termelétrica e biodiesel na região amazônica (Acre, Amazonas, Rondônia, Roraima e Pará). A empresa anunciou que vai investir R$ 5 bilhões nos próximos três anos (clique) na produção de biocombustíveis, entre eles o etanol de milho. O projeto da BR-319 certamente facilitaria o desenvolvimento de seus negócios na região. Acesse o núcleo desta informação aqui.

Estudos coordenados por Ferrante apontam que a expansão de plantações para produção de biocombustíveis na Amazônia tende a estimular o desmatamento e o colapso da floresta, além de proporcionar saltos zoonóticos de vírus armazenados (clique) na floresta, gerando novas pandemias globais.

Com base em pesquisas científicas, Ferrante conseguiu derrubar um decreto presidencial que liberava a cana-de-açúcar para a Amazônia, mas, segundo ele, o milho e o dendê ainda são culturas com enorme potencial de danos ambientais e de desmatamento, o que exige um zoneamento ecológico econômico principalmente para área da rodovia BR-319.

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Desmatamento criminoso na região. (Img. cedida)

Políticos, empresas de infraestrutura, corporações nacionais e internacionais demonstram grande interesse neste projeto ambicioso, pois a rodovia seria fundamental para a expansão de seus negócios.

A voz de uma figura pública e política, o governador do Amazonas, Wilson Lima, teria sido uma grande oportunidade para entendermos mais sobre este projeto desafiador. Infelizmente, Lima não respondeu a um pedido de entrevista. A única ONG ativa na região que aceitou ser entrevistada sobre o projeto BR-319 foi o IDESAM/Observatório BR-319.

A Fundação Gordon e Betty Moore (clique) não responderam ao nosso pedido de entrevista.

O Funbio (clique) requisitou informações adicionais sobre a pauta e questões que seriam abordadas, mas não respondeu às perguntas solicitadas sobre o projeto, conforme haviam prometido.

O Fundo JBS pela Amazônia (clique) mencionou que eles não poderiam contribuir com esse assunto, porque a reconstrução da BR-319 não teria nada a ver com o fundo e isso não seria algo que impactaria diretamente os seus projetos.

O WWF Brasil (clique) não dispôs de um porta-voz para esclarecer dúvidas relacionadas ao projeto e solicitou que qualquer dúvida fosse direcionada ao Observatório-319.

A mídia nacional e internacional, políticos, corporações, órgãos governamentais, bem como algumas ONGs, parecem relutantes em discutir sobre a reconstrução da BR-319.

Até agora, todos os estudos demonstram que este projeto carece de uma governança ambiental e o mesmo seria prejudicial para as comunidades locais, bem como para a floresta. Também carece de estudo de viabilidade econômica, um plano do sistema de monitoramento e consulta às comunidades tradicionais e indígenas.

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PF faz apreensão de madeira ilegal. (Img. cedida)

Este parece ser um plano politicamente motivado, com cada presidente eleito repetidamente fazendo a mesma promessa, vendendo a ideia de que a reconstrução da rodovia BR-319 traria prosperidade para a região, sem considerar que também poderia trazer poluição, atividades ilegais, violência, doenças, desmatamento desenfreado e destruição irreversível da floresta com consequências catastróficas para o Brasil e o resto do mundo.

Se concluído, esse projeto poderá colocar em risco o futuro e a sobrevivência da floresta amazônica, tudo em nome do que chamam de “progresso”!

Monica PiccininiJornalista Ambiental de Londres para a Plataforma AEscolaLegal

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